O
quadro ganhava tons de vermelho conforme ele avançava em direção a sua ideia.
Não acreditava como não tinha pensado nisso, em suas longas tardes de tédio. As
ferramentas estavam lá, os quadros virgens esperando pela camada de tinta. A
vontade, por mais discreta, ainda estava presente. Achou, por um instante, que
tinha perdido muito tempo.
Seus
braços magros traçavam linhas firmes, retas e curvas, com precisão e
severidade, como se castigasse o branco por não ter lhe ajudado a pensar em uma
saída fácil. Em sua paleta já não era possível distinguir bem as cores, apenas
bordas com aquilo que no começo havia sido bem definido. O escarlate agora era
uma profusão de escuro, uma textura estranha, mas atrativa. Conforme dava
formas à sua obra, seus olhos se apertavam em uma expressão de atenção aos
mínimos detalhes. Nada poderia ser mais fiel, pensou ele. Nem se daria ao luxo
de algo menor. Não se desperdiça uma chance quando ela nos bate à porta, seguiu
pensando, com um sorriso involuntário no canto da boca.
Mantinha-se
de pé em frente ao cavalete, trocando a pressão do peso do corpo de um pé para
o outro. O banco alto estava caído de lado, sem vida, negligenciado. Sua calça
jeans surrada estava salpicada de tinta, manchas velhas. A regata branca estava intacta comparada ao
resto, mas ela por si só era o contraste principal. Grandes manchas ovais de
suor brotavam das axilas e do meio do peito, colando-a a pele morena que
crescia e diminuía, de acordo com sua respiração tilintante. Seus cabelos
longos e negros estavam livres, bagunçados, balançando como se houvesse vento
no quarto. Músculos do rosto contraído, como por prazer. Talvez tensão. Era um
artista por completo, poderia pensar qualquer pessoa.
A
obra estava chegando ao fim. Estava perfeita, dizia o pintor a si mesmo, seguro
de suas palavras e ágil em seus movimentos. Largou o pincel e a paleta de cores
indistintas em cima de um balcão de madeira crua, junto com o pano velho, de
tecido puído e acinzentado, guardado excepcionalmente para essas raras situações
de grande criação. Com o dorso da mão limpou o suor da testa, que colava alguns
fios de cabelo rente às sobrancelhas espessas. Iria comer alguma coisa. Não
precisava mais ter medo nem pressa, tudo estava perto do fim, mais uma vez.
Saiu do aposento e fez barulho, sons de água em um copo, uma geladeira sendo
aberta e portas de armário fechando, um ranger angustiante de passos sobre uma
madeira nobre.
Demorou alguns minutos, mas pareceu uma
eternidade para a mulher que o aguardava. Punhos presos a uma pilastra com arame
farpado, que lhe arranhava a pele e lhe sugava discretos filetes de sangue
vivo, quente. Os pés estavam também amarrados, ela não tinha saída que não
fosse ficar na mesma posição agradável que ele a posicionara. O vestido de lã
crua contrastava com o vermelho dos seus lábios, uma mancha de batom disforme.
O cabelo longo e castanho pendia de apenas um lado do ombro, bem penteado. Estava
sobre várias almofadas bordadas, ao lado de um vaso de gérberas vermelhas.
A
musa inspiradora não gritava, não gemia, não chorava. Tudo tinha acontecido
dias antes e ninguém ouviu suas preces. Ninguém iria ouvir, não fazia sentido
em continuar suplicando. Estava conformada de seu destino, mesmo não sabendo o
que lhe esperava. Tão acertada com os próprios sentimentos e absorta em alguns
porquês, não percebeu que ele estava agachado ao seu lado, com um copo com um
líquido esbranquiçado e cubos de gelo, dupla de um provável sanduiche.
“Coma
um pouco e tome essa limonada, vai lhe fazer bem. E está ficando bom”. Disse
ele com uma voz tão suave que ela não acreditava ser o mesmo homem que lhe
prendeu as mãos e os pés tão forte que seus ossos doíam. Ele insistiu: “Prove
pelo menos”.
E
ela comeu e ela bebeu e ele limpou delicadamente seus lábios com um lenço
limpo, branco. Tudo com calma, não queria perder o tom de vermelho do rosto de
sua inspiração, a mulher de pardo. Aquela que lhe oferecera uma nova alegria ao
fazer arte. De uma forma perversa, ela gostou da gentileza momentânea, mesmo
acreditando que seria descartada depois. Ele levantou-se e virou as costas.
E
voltou a pintar.
Semanas
depois, o quadro da Mulher de Pardo foi exposto em uma pequenina galeria do
centro da cidade. Ao lado do quadro da Mulher de Amarelo, da Mulher de Lilás e
da Mulher de Preto. O talentoso pintor recebia elogios de suas obras, que se
recusava a vender. Transpiravam realidade, carga emocional, vivacidade. Um
senhor de olhos verdes e voz gentil disse que seus quadros pareciam vivos.
Enquanto
conversava com uma mãe e sua filha, agradecendo humildemente os apreços da
dama, começou a pensar em como seria triste perder um foco, viver no vazio.
Ao
apertar a mão da mulher sentiu uma nova ideia surgindo. Enquanto ela se virava
e ia embora, com sua pequena agarrada ao seu peito e apontando para a rua, ele
pensou em voz alta, mas em tom discreto, como um sussurro:
“A
Mulher de Azul é o que preciso”.