30 de abril de 2013

O Artista


O quadro ganhava tons de vermelho conforme ele avançava em direção a sua ideia. Não acreditava como não tinha pensado nisso, em suas longas tardes de tédio. As ferramentas estavam lá, os quadros virgens esperando pela camada de tinta. A vontade, por mais discreta, ainda estava presente. Achou, por um instante, que tinha perdido muito tempo.

Seus braços magros traçavam linhas firmes, retas e curvas, com precisão e severidade, como se castigasse o branco por não ter lhe ajudado a pensar em uma saída fácil. Em sua paleta já não era possível distinguir bem as cores, apenas bordas com aquilo que no começo havia sido bem definido. O escarlate agora era uma profusão de escuro, uma textura estranha, mas atrativa. Conforme dava formas à sua obra, seus olhos se apertavam em uma expressão de atenção aos mínimos detalhes. Nada poderia ser mais fiel, pensou ele. Nem se daria ao luxo de algo menor. Não se desperdiça uma chance quando ela nos bate à porta, seguiu pensando, com um sorriso involuntário no canto da boca.

Mantinha-se de pé em frente ao cavalete, trocando a pressão do peso do corpo de um pé para o outro. O banco alto estava caído de lado, sem vida, negligenciado. Sua calça jeans surrada estava salpicada de tinta, manchas velhas.  A regata branca estava intacta comparada ao resto, mas ela por si só era o contraste principal. Grandes manchas ovais de suor brotavam das axilas e do meio do peito, colando-a a pele morena que crescia e diminuía, de acordo com sua respiração tilintante. Seus cabelos longos e negros estavam livres, bagunçados, balançando como se houvesse vento no quarto. Músculos do rosto contraído, como por prazer. Talvez tensão. Era um artista por completo, poderia pensar qualquer pessoa.

A obra estava chegando ao fim. Estava perfeita, dizia o pintor a si mesmo, seguro de suas palavras e ágil em seus movimentos. Largou o pincel e a paleta de cores indistintas em cima de um balcão de madeira crua, junto com o pano velho, de tecido puído e acinzentado, guardado excepcionalmente para essas raras situações de grande criação. Com o dorso da mão limpou o suor da testa, que colava alguns fios de cabelo rente às sobrancelhas espessas. Iria comer alguma coisa. Não precisava mais ter medo nem pressa, tudo estava perto do fim, mais uma vez. Saiu do aposento e fez barulho, sons de água em um copo, uma geladeira sendo aberta e portas de armário fechando, um ranger angustiante de passos sobre uma madeira nobre.

 Demorou alguns minutos, mas pareceu uma eternidade para a mulher que o aguardava. Punhos presos a uma pilastra com arame farpado, que lhe arranhava a pele e lhe sugava discretos filetes de sangue vivo, quente. Os pés estavam também amarrados, ela não tinha saída que não fosse ficar na mesma posição agradável que ele a posicionara. O vestido de lã crua contrastava com o vermelho dos seus lábios, uma mancha de batom disforme. O cabelo longo e castanho pendia de apenas um lado do ombro, bem penteado. Estava sobre várias almofadas bordadas, ao lado de um vaso de gérberas vermelhas.

A musa inspiradora não gritava, não gemia, não chorava. Tudo tinha acontecido dias antes e ninguém ouviu suas preces. Ninguém iria ouvir, não fazia sentido em continuar suplicando. Estava conformada de seu destino, mesmo não sabendo o que lhe esperava. Tão acertada com os próprios sentimentos e absorta em alguns porquês, não percebeu que ele estava agachado ao seu lado, com um copo com um líquido esbranquiçado e cubos de gelo, dupla de um provável sanduiche.

“Coma um pouco e tome essa limonada, vai lhe fazer bem. E está ficando bom”. Disse ele com uma voz tão suave que ela não acreditava ser o mesmo homem que lhe prendeu as mãos e os pés tão forte que seus ossos doíam. Ele insistiu: “Prove pelo menos”.

E ela comeu e ela bebeu e ele limpou delicadamente seus lábios com um lenço limpo, branco. Tudo com calma, não queria perder o tom de vermelho do rosto de sua inspiração, a mulher de pardo. Aquela que lhe oferecera uma nova alegria ao fazer arte. De uma forma perversa, ela gostou da gentileza momentânea, mesmo acreditando que seria descartada depois. Ele levantou-se e virou as costas.

E voltou a pintar.

Semanas depois, o quadro da Mulher de Pardo foi exposto em uma pequenina galeria do centro da cidade. Ao lado do quadro da Mulher de Amarelo, da Mulher de Lilás e da Mulher de Preto. O talentoso pintor recebia elogios de suas obras, que se recusava a vender. Transpiravam realidade, carga emocional, vivacidade. Um senhor de olhos verdes e voz gentil disse que seus quadros pareciam vivos.

Enquanto conversava com uma mãe e sua filha, agradecendo humildemente os apreços da dama, começou a pensar em como seria triste perder um foco, viver no vazio.

Ao apertar a mão da mulher sentiu uma nova ideia surgindo. Enquanto ela se virava e ia embora, com sua pequena agarrada ao seu peito e apontando para a rua, ele pensou em voz alta, mas em tom discreto, como um sussurro:

“A Mulher de Azul é o que preciso”.

2 comentários:

  1. Excelente conto, cheio do seus detalhes simbólicos e com um grande toque de terror psicológico.

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  2. Ah, obrigado pelo comentário. A arte existe sob diversas formas, que mudam de acordo com os olhos de seu criador...

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