1 de maio de 2013

O Vazio


A cada vez que as luzes eram acesas depois das oito, várias mariposas ficavam vagando por entre as lâmpadas fluorescentes, atraídas pela luz fria. Foi um dia quente, úmido pela chuva matinal, mas o céu estava limpo, cheio de estrelas. Uma boa oportunidade de caminhar ao ar livre, pensou Gabriel. E uma chance melhor ainda de se livrar dos colegas daquele acampamento.

Seu amigo estava deitado na parte de cima do beliche, lendo algumas revistas, indiferente. Seus cabelos loiros e longos cobriam-lhe a face, como se fosse um homem sem rosto. O edredom verde-escuro, para combinar com as paredes da mesma cor, cobria metade de seu tronco, deixando à mostra uma pele branca, denúncia de que há tempos não tinha contato com a luz do sol. Ele estava tão quieto nos últimos dias, evasivo. Se quer queri ir para o acampamento, estava lá por pressão dos pais.

         Então ele levantou os olhos e percebeu que o amigo abria a porta. Rápido como um gato, pulou da cama e foi em direção ao jovem negro.

“O que está fazendo, Gabriel? Não sabe que é proibido sair dos dormitórios depois das sete?” Ele parecia mais curioso do que aflito.

“E daí? Só temos um guarda nos vigiando hoje, e aquele velho gordo não vai nos importunar agora. Deve estar se entupindo de comida, provavelmente. Vem comigo.” Arthur fixou seus olhos castanhos em seu amigo por um instante e percebeu, com um sorriso no rosto, que ele já vestia sua calça e seu tênis Nike. “Você já estava planejando isso, não?” Falou o loiro com um tom de voz sagaz.

“Espere um pouco, Arthur. Ouvi o som do portão, é melhor eu dar uma olhada antes de sairmos.” E então, furtivamente, abriu a porta e se retirou tão silenciosamente, a passos macios.

Enquanto ele esperava, as lâmpadas piscaram duas vezes, e então simplesmente apagaram. Tudo ficou escuro. Ainda sentado na cama, Arthur levantou-se, pretendendo abrir a porta para ver o que acontecia. Mas não chegou à metade do trajeto. Algo o acertou nas costas, fazendo-o desabar no chão com um estrondo. Sentiu mais outro golpe violento nas costas, seguido de estalos. E muitos outros deram sequência ao primeiro.

Gabriel, que estava perto de uma das pilastras, ouviu o grito e voltou correndo. Tentou abrir a porta, a maçaneta girou, mas ela não abria totalmente. Algo estava impedindo-o, como se houvesse uma pessoa forte do outo lado tentando fechá-la. Ele berrou para que o amigo abrisse a porta, mas não surtiu efeito, e ele continuou a ouvir os gritos. Além deles, estática. Como se houvesse uma televisão ligada, mas sem nenhum canal sintonizado.

Os outros colegas já estavam abrindo as portas e, temerosos pelos gritos altos e os sons de destruição, colocavam as cabeças para fora, olhos atentos e arregalados. Um jovem pequeno e ruivo, de bochechas rosadas, começou a chorar. Já estava com as mãos fechadas para bater novamente, gritando por socorro, e então a luz voltou. De longe, o feixe de luz da lanterna se aproximava, com o instrutor gordo a guia-la, correndo e visivelmente ofegante.

Colocou a mão fria na maçaneta, girou-a lentamente, como se fosse um procedimento delicado, e forçou a porta. Ela abriu sem nenhuma resistência e então ele viu. Seus olhos momentaneamente se tornaram vidrados, e ele sentiu como se fosse desabar.

Seu amigo jazia deitado, de costas. Banhado em vermelho e com várias lacerações, seu rosto estava desfigurado, no que poderia ser encarado tanto como uma última expressão de pavor ou agonia. Sua roupa estava rasgada em vários pontos e Gabriel percebeu que havia coisas brancas espalhadas pelo chão, que mais tarde iria perceber, com terror, que eram dentes e outros pedaços de ossos. As paredes do dormitório estavam todas salpicadas de sangue e os poucos móveis e pertences estavam distribuídos caoticamente.

Ele não percebeu duas coisas naquele cenário terrível. A primeira é que no antebraço de seu amigo estava escrito, rasgado à lâmina, o símbolo “I”. A segunda coisa que não notou é que o teto, bem acima do corpo de Arthur, estava com marcas que queimado, com a madeira totalmente carbonizada, formando letras, uma palavra só:
VAZIO
Dopado pelo choque, ele cambaleou para trás e, caindo pelos dois pequenos degraus que dividiam a parte frontal dos dormitórios, desmaiou sobre o gramado molhado.

Horas depois, a polícia encontrou no quarto, ao lado do corpo, um pé de cabra, que consideraram a arma do homicídio. Encontraram também, vasculhando os pertences de Arthur, drogas; seringas; uma pistola semiautomática; munição; duas fotos de diferentes adolescentes, presos acusados de assalto e, não menos curioso, uma carta em papel branco com a mesma palavra escrita no teto do local do local do crime.

Quando Gabriel acordou, deitado em uma maca, dentro do hospital municipal, percebeu seus pais do lado de fora, tensos e discutindo com uma enfermeira grande, de aspecto severo. Teve vontade de chorar. Queria levantar e ir abraça-los, mas se sentia terrivelmente cansado. Simplesmente não conseguia. Notou um pedaço de papel dobrado em dois sobre o lençol azul e impecável, acima do seu umbigo. Curioso e com a mente turva devido aos calmantes, abriu-o devagar e leu seu conteúdo, resumido em apenas uma palavra: “ingratidão”.

Sem entender o que significava, amassou o papel e, reduzindo-o como uma bolinha, jogou no chão. Tentou se sentar na cama, mas uma pontada de dor atingiu sua nuca, forte e aguda, avisando que não era hora de se mexer.

Então, simplesmente deixou-se cair e adormeceu, com seus pensamentos voltados para sua última visão de seu amigo, olhos vazios e inexpressivos. Ausentes.

2 comentários:

  1. Fantástico, parabéns !

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  2. Ah, obrigado pelo elogio! Não é grande coisa mas dá para perder uns segundinhos lendo!

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