A
cada vez que as luzes eram acesas depois das oito, várias mariposas ficavam
vagando por entre as lâmpadas fluorescentes, atraídas pela luz fria. Foi um dia
quente, úmido pela chuva matinal, mas o céu estava limpo, cheio de estrelas.
Uma boa oportunidade de caminhar ao ar livre, pensou Gabriel. E uma chance
melhor ainda de se livrar dos colegas daquele acampamento.
Seu
amigo estava deitado na parte de cima do beliche, lendo algumas revistas,
indiferente. Seus cabelos loiros e longos cobriam-lhe a face, como se fosse um
homem sem rosto. O edredom verde-escuro, para combinar com as paredes da mesma cor,
cobria metade de seu tronco, deixando à mostra uma pele branca, denúncia de que
há tempos não tinha contato com a luz do sol. Ele estava tão quieto nos últimos dias, evasivo. Se quer queri ir para o acampamento, estava lá por pressão dos pais.
Então ele levantou os olhos e percebeu que o amigo abria a porta. Rápido como um gato, pulou da cama e foi em direção ao jovem negro.
Então ele levantou os olhos e percebeu que o amigo abria a porta. Rápido como um gato, pulou da cama e foi em direção ao jovem negro.
“O
que está fazendo, Gabriel? Não sabe que é proibido sair dos dormitórios depois
das sete?” Ele parecia mais curioso do que aflito.
“E
daí? Só temos um guarda nos vigiando hoje, e aquele velho gordo não vai nos
importunar agora. Deve estar se entupindo de comida, provavelmente. Vem comigo.”
Arthur fixou seus olhos castanhos em seu amigo por um instante e percebeu, com
um sorriso no rosto, que ele já vestia sua calça e seu tênis Nike. “Você já estava
planejando isso, não?” Falou o loiro com um tom de voz sagaz.
“Espere
um pouco, Arthur. Ouvi o som do portão, é melhor eu dar uma olhada antes de
sairmos.” E então, furtivamente, abriu a porta e se retirou tão
silenciosamente, a passos macios.
Enquanto
ele esperava, as lâmpadas piscaram duas vezes, e então simplesmente apagaram.
Tudo ficou escuro. Ainda sentado na cama, Arthur levantou-se, pretendendo abrir
a porta para ver o que acontecia. Mas não chegou à metade do trajeto. Algo o acertou
nas costas, fazendo-o desabar no chão com um estrondo. Sentiu mais outro golpe
violento nas costas, seguido de estalos. E muitos outros deram sequência ao primeiro.
Gabriel,
que estava perto de uma das pilastras, ouviu o grito e voltou correndo. Tentou
abrir a porta, a maçaneta girou, mas ela não abria totalmente. Algo estava
impedindo-o, como se houvesse uma pessoa forte do outo lado tentando fechá-la. Ele berrou para que o amigo abrisse a porta, mas não surtiu efeito, e
ele continuou a ouvir os gritos. Além deles, estática. Como se houvesse uma
televisão ligada, mas sem nenhum canal sintonizado.
Os
outros colegas já estavam abrindo as portas e, temerosos pelos gritos altos e os sons de destruição, colocavam
as cabeças para fora, olhos atentos e arregalados. Um jovem pequeno e ruivo, de bochechas rosadas, começou a chorar. Já estava com as mãos
fechadas para bater novamente, gritando por socorro, e então a luz voltou. De
longe, o feixe de luz da lanterna se aproximava, com o instrutor gordo a guia-la, correndo e visivelmente ofegante.
Colocou
a mão fria na maçaneta, girou-a lentamente, como se fosse um procedimento
delicado, e forçou a porta. Ela abriu sem nenhuma resistência e então ele viu.
Seus olhos momentaneamente se tornaram vidrados, e ele sentiu como se fosse
desabar.
Seu
amigo jazia deitado, de costas. Banhado em vermelho e com várias lacerações,
seu rosto estava desfigurado, no que poderia ser encarado tanto como uma última
expressão de pavor ou agonia. Sua roupa estava rasgada em vários pontos e
Gabriel percebeu que havia coisas brancas espalhadas pelo chão, que mais tarde
iria perceber, com terror, que eram dentes e outros pedaços de ossos. As
paredes do dormitório estavam todas salpicadas de sangue e os poucos móveis e
pertences estavam distribuídos caoticamente.
Ele
não percebeu duas coisas naquele cenário terrível. A primeira é que no
antebraço de seu amigo estava escrito, rasgado à lâmina, o símbolo “I”. A segunda
coisa que não notou é que o teto, bem acima do corpo de Arthur, estava com
marcas que queimado, com a madeira totalmente carbonizada, formando letras, uma
palavra só:
VAZIO
Dopado
pelo choque, ele cambaleou para trás e, caindo pelos dois pequenos degraus que
dividiam a parte frontal dos dormitórios, desmaiou sobre o gramado molhado.
Horas
depois, a polícia encontrou no quarto, ao lado do corpo, um pé de cabra, que
consideraram a arma do homicídio. Encontraram também, vasculhando os pertences
de Arthur, drogas; seringas; uma pistola semiautomática; munição; duas fotos de
diferentes adolescentes, presos acusados de assalto e, não menos curioso, uma
carta em papel branco com a mesma palavra escrita no teto do local do local do
crime.
Quando
Gabriel acordou, deitado em uma maca, dentro do hospital municipal, percebeu
seus pais do lado de fora, tensos e discutindo com uma enfermeira grande, de aspecto severo. Teve vontade de chorar. Queria levantar e ir abraça-los, mas se sentia
terrivelmente cansado. Simplesmente não conseguia. Notou um pedaço de papel dobrado
em dois sobre o lençol azul e impecável, acima do seu umbigo. Curioso e com a mente
turva devido aos calmantes, abriu-o devagar e leu seu conteúdo, resumido em apenas uma
palavra: “ingratidão”.
Sem entender
o que significava, amassou o papel e, reduzindo-o como uma bolinha, jogou no
chão. Tentou se sentar na cama, mas uma pontada de dor atingiu sua nuca, forte
e aguda, avisando que não era hora de se mexer.
Então,
simplesmente deixou-se cair e adormeceu, com seus pensamentos voltados para sua
última visão de seu amigo, olhos vazios e inexpressivos. Ausentes.
Fantástico, parabéns !
ResponderExcluirAh, obrigado pelo elogio! Não é grande coisa mas dá para perder uns segundinhos lendo!
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