A rua Doneto era famosa por abrigar, entre outras lojinhas, o único mercado de produtos orgânicos da cidade. O lugar era pequeno e transpirava nostalgia, com suas paredes de tijolos à vista e seus cartazes convidando as pessoas à uma vida mais saudável.
Quem quer que entrasse no estabelecimento era recebido com uma onda de perfumes agradáveis, desprendidos das laranjas, tangerinas, melões e outras frutas tropicais. Um mar de cores vibrantes também fazia dupla com os perfumes, uma alegre mistura de tons de amarelo, laranja, verde e degradês que encantariam os olhos de qualquer criança.
Da grande janela de vidro perfeitamente limpo, sem um arranhão, era possível observar todo o movimento da rua sem ser perturbado pelos sons do caos urbano. Tudo graças aos investimento em uma boa camada isolante de som, adquirida em várias prestações por Jorge, o velho de olhos cansados dono do lugar. O isolamento acústico associado à música ambiente que rodava todas as horas do dia, em um volume tão baixo quanto um sussurro, relaxava as pessoas. Tranquilos e à vontade, os clientes poderiam - e deveriam - comprar mais, ele esperava.
O chão era revestido de linóleo branco e refletia a luz das lâmpadas. Passava uma sensação de limpeza. As paredes internas eram todas da mesma cor, levemente amareladas e decoradas com pôsteres semelhantes aos que ficam do lado de fora, de cartazes de preços anunciando promoções imperdíveis e, emoldurados, dois quadros com fotografias do pai e do avô materno de Jorge. Vender itens da sua fazenda como frutas, legumes, verduras, ovos de galinhas caipiras e até suco de uva natural era o negócio de sua família, antes mesmos de se pensar na existência de agrotóxicos e outros venenos desculpáveis. Passado de geração a geração, ele faria o mesmo com seu filho, se tivesse um.
Nunca teve sucesso em suas tentativas de fazer filhos. Sua mulher não conseguia engravidar e isso sempre foi a miséria do casal. Motivos para discussões e lágrimas, a incapacidade de gerar provocava em ambos sentimentos de decepção, incapacidade e tristeza , todos mistos mas em intensidades diferentes. Como responder àquelas perguntas cretinas e que as pessoas insistiam em realizar, "Quantos filhos vocês têm?", "Quando vai surgir um meninão ou uma menininha nessa casa tão grande?" e, a mais odiosa para ele, "Por que estão sem filhos?".
Por ironia do acaso ou puro azar, que por acaso ele não acreditava até então, sua esposa veio a falecer poucos meses depois de conseguir engravidar. O fato de perdê-la tão repentinamente e de levar consigo a continuação em seu ventre deu forças aos impulsos que o levaram à depressão. A única coisa que serviu de esteio e deu-lhe forças para andar foi trabalho no mercadinho. Ele não via outro caminho mais iluminado do que esse, pois recusava-se a ouvir aquela voz que dizia que seu problema seria fácil de resolver com um dedo pressionando um gatilho, que dizia que um milésimo de segundo - e um pouco de sangue - acabaria com sua dor.
Seguia todo dia a mesma rotina. Antes de abrir a loja, varria o chão e retirava cuidadosamente o pó dos móveis e balcões, tanto do caixa como aqueles em que colocaria mais tarde as frutas. Não confiava à ninguém essa tarefa, queria ter a certeza de um trabalho perfeito, que apenas ele mesmo poderia fazer. Lavava o capacho para que todo o cliente que entrasse interpretasse como se fosse um material novo, apesar de estar gasto nas pontas e o "bem vindo" estar quase invisível pela força do tempo e do uso. Posicionava as mamões, as bandejas de morangos e os cachos de uva, que Antônio lhe trazia antes do sol nascer. Cada fruta ou maço de folhas verde-escuras era cuidadosamente posicionado. Ele tinha muito tempo livre. Sempre certificava-se de renovar seus extintores, trocando-os mesmo quando o prazo de utilização estava longe de acabar. Segurança era seu sobrenome, mas não foi sempre assim. Essa fixação só germinou, criou raízes e se fixou em sua vida, como hera que se agarra firmemente a um muro alto, depois de Cláudia morrer.
Presa dentro do carro pelo metal retorcido e, o mais terrível, plenamente consciente, ela sentiu o cheiro de gasolina que escapara do motor destruído. Em sua última tentativa mecânica de funcionar, ele liberou algumas faíscas como alguém que boceja antes de dormir e então, criado o incêndio, ela queimou. Suas súplicas foram ouvidas a muitos metros de distância. As testemunhas do acidente, basicamente vizinhos, jamais conseguiram esquecer completamente dos gritos, o que incluíra o próprio Jorge, que estava esperando por ela em frente a uma grande loja de discos de vinil usados. Ele viu um veículo ultrapassando o sinal vermelho, batendo no carro de sua esposa e o fazendo perder o controle, batendo direto em um plátano velho. Desesperado, tentou ajudar, mas foi impedido por outras pessoas que lhe faziam companhia no espetáculo amarelo que estava acontecendo a sua frente.
Sentado na beira da calçada, de longe, observava a montanha de cinzas que se tornou o velho carro e sua jovem mulher, fundidos para sempre no final de carbono que espera todos os incendiados. Depois daquele dia, ele nunca mais foi feliz.
Aquele dia foi tão normal quantos todos os outros. Tarde, pouco antes de fechar as portas uma cliente trouxe problemas. Carregando ou, dependendo do ponto de vista, literalmente arrastando seu filho pequeno, uma criança de cabelos negros e muito pálida e com uma aparência apática. Jorge concluiu que ele deveria estar gripado ou com alguma virose do gênero, devido a vários casos que assistiu na televisão e escutou pelo rádio stereo, todos envolvendo crianças. Não deveria pegar sereno, ele pensou.
Como se captasse esse pensamento, o garoto puxou o braço da mãe, cambaleou alguns passos trôpegos para frente e vomitou. O líquido quente e rosado, levemente viscoso saia de sua boca através de jatos vigorosos. Era muito conteúdo para uma criança daquele tamanho, Jorge pensou. Também notou vários pedaços de algo que considerou ser macarrão instantâneo mal digerido. Essas porcarias não fazem bem à ninguém, disse a si mesmo. A mãe, aflita demais pela discreta eliminação de seu filho, pegou-o pelo punho e partiu em direção a entrada do mercado. Com uma curva suave, jogou uma nota de cinquenta reais no balcão e foi embora com seu rebento, um pacote de biscoitos de água e sal rico em fibras e uma garrafinha pequena de achocolatado orgânico. Como um trovão, saiu sem exigir o troco, "Pode ficar com o que sobrou", anunciou nervosa.
Por sorte, era a última cliente do local. Jorge deu a volta no balcão, desviou da poça de vômito e chegou a porta da frente, mudando a face da plaquinha, expondo o "fechado" para o lado de fora, bem visível naquela porta da frente. Trancou-a e, voltando pelo mesmo caminho, foi em direção à porta dos fundos. Antes dela, ficava o depósito, que era seu destino original. Enquanto pegava um pano velho e enchia o balde verde com água e desinfetante de lavanda, seu preferido, nem se deu conta que a escuridão da noite já tinha se instalado. Também não notou que há algum tempo havia em frente ao seu mercado três homens parados.
Com roupas escuras e puídas, rasgadas no joelho, talvez fosse o real motivo que levou a mãe a apressar-se e ir embora como se não houvesse amanhã. Pelo menos um motivo mais forte do que o embaraço pela mistura gástrica e bile despejada por seu filho. Seguravam em cada mão uma garrafa de cerveja com uma buchinha de tecido e jornal na ponta, servindo como rolha.
Quando ouviu o som de vidro se estilhaçando e uma explosão abafada vindo do interior de seu mercado, Jorge correu de onde estava. Chegou a frente tão rápido que por pouco não pisoteou as labaredas que serpenteavam pelo seu chão até então quase imaculado. Foi em direção a porta, com os antebraços protegendo o rosto. Mas o caminho já estava tomado pelo inferno vermelho. Tentou olhar através da fumaça, a procura dos extintores, mas apenas um estava ao seu alcance. Com os olhos já marejando pelo produto gasoso do fogo, arrancou-o do seu repouso tranquilo. Rompendo o lacre e o virando em direção as labaredas, acionou o gatilho. Esvaziou todo o conteúdo gelado em minutos, mas não foi o suficiente, como se o incêndio fosse um gigante e o extintor uma pequena pedra lançada em sua direção.
Indignado e surpreso, lançou o cilindro vermelho para o meio do fogo como uma vingança repleta de ironia. Então virou-se e foi em direção da porta dos fundos, que não abriu. Trancada, supos que alguém estava se esforçando para que não saísse daquela quente armadilha, até se lembrar que foi ele mesmo que a chaveou antecipadamente naquele dia. Mas nada podia fazer, pois o molho de chaves, que estava acima do balcão, já tinha sido engolido pelas chamas, tal qual o próprio balcão.
Sem muitas opções, engatinhou para um dos cantos do estabelecimento, onde ficavam os pinhões, a lenha e as caixas de madeira, encolheu-se e fechou os olhos, sabia que não adiantaria gritar.
Encolhido como um feto e chorando como um bebê, lembrou-se de tudo o que amava, ou tentou se lembrar. Nada dos olhos azuis de sua esposa, somente o brilho das maçãs argentinas; nada de suas férias naquela praia linda, mas o orgulho que sentia pelo seu linóleo sempre lustroso; nada de se lembrar daquelas tardes quentes em que Cláudia, com trajes de banho e tomando um sorvete, falava sobre como era feliz, mas se lembrava dos sininho preso à porta que sempre anunciava a chegada de um novo cliente. A única coisa sólida que se lembrava era justamente daquilo que nunca possuiu: seu filho.
Se seu fim fosse outro e ele analisasse a situação de fora, provavelmente acharia curioso como os últimos momentos de vida de uma pessoa são romantizados: nada de tão dramático como ele esperava que seria, nada de filmes mostrando sua vida.
E então ele queimou.
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