6 de maio de 2013

Ao que Sobrar de Nós


A decisão já foi tomada, derradeira será até o fim do dia.

Em qual das taças siamesas está o veneno que lá derramei?

Tomará o meu par à frente ou tomarei eu como um amargo vinho?

Das duas a resposta é clara, ao que morrer: nós dois partiremos.

De punhos cerrados, pulso arquejante, pele fria como mármore.

Rubor na face, o grito cimo de uma de nossas gargantas ecoará pela prisão de aço.

Mas o outro silenciará, comedido nas suas próprias percepções.

Poderia ser evitado? Poderia o gigante evasivo sorrateiramente vazar pelos cantos?

Como a umidade que assola a parede e revela, como em uma causa secundária, as camadas internas de tinta, tintas de medo, de angústia, de dor?

Não há como prever a tempestade vespertina nem a resposta a todas as indagações febris.

Basta para saber, até que a oportunidade avance sobre os dois soldados, esperar.

E ao que restar de meu orgulho, jogue-o no jardim, para que de toda minha ruína, algo de bonito - e vivo - possa florescer. 

Para Olhar o Céu


         Enquanto pedalava pelo parque, Camila pensava em como diria a verdade. Não parecia ser a coisa mais sensata a se fazer, muito menos em uma terça-feira tão quente e bonita. Não se ouvia nada além do canto dos pássaros e do murmúrio distante dos carros.

      A calçada era cinza e uniforme, macia, perfeita para quem quisesse percorrê-la. Mas naquele dia ela era como um tapete amarelo devido aos velhos e guerreiros Ipês, que floriam intensamente, testemunhas de tantas mazelas e belezas. Ela sentiu o vento no rosto e os cabelos nos ombros em ondas horizontais. Sorriu com o cheiro do algodão-doce. Decidiu que não lhe faria mal parar um pouco, descansar as pernas, molhar os dedos na água da fonte, quem sabe até mesmo tomar um sorvete.

     Parou, escolheu um lugar apropriado e descansou sua velha bicicleta com uma cesta branca no guidom prateado. Sentou-se e percebeu que seus cadarços estavam desamarrados. E percebeu também que não havia pressa em sua missão e que o céu estava limpo e que talvez a vida valesse à pena. Puxou da bolsa surrada uma grande maçã-verde, esfregando-a no punho de sua blusa vermelha, até que ficasse tão lustrada quanto ficaria um pequeno espelho. Deu uma mordida e sentiu-se bem. Pensou na sorte que tivera quando aquilo aconteceu, e quanto penalizada ela deveria se sentir por causa disso, tudo ao mesmo tempo.

       Não há o que fazer, então solucionada a situação está. Com a mão esquerda torcendo o tecido azul de sua saia de cetim, pensou e pensou. Talvez fosse um erro, deveria voltar atrás. Quem sabe foi o maior acerto da sua vida e deveria seguir sem pestanejar.  Sendo uma coisa ou outra, isso poderia ficar para depois. Tirou as sapatilhas e, testando a temperatura da água com a ponta dos pés brancos, entrou na água da fonte.

    Seus pés cobriam as moedas lançadas e as carpas estavam indiferentes. E ela se sentiu livre.

5 de maio de 2013

Fuga Baldada


      O jovem sentando no banco de madeira velha não sabia como aquilo aconteceu. Em um piscar de olhos, o mesmo problema havia se instalado como da primeira vez. Esperava o trem pela manhã, certo de que quando ele chegasse e suas portas de metal se abrissem, poderia entrar com a cabeça baixa. Ninguém se senta ao seu lado então ele lê um livro velho. Deseja desesperadamente viver a história que os personagens contam, pois julga serem diferentes da que ele mesmo vive. Mas o tema parece tão mínimo. Estica as pernas, olha para cima e fecha os olhos, ouve o ambiente e as vozes que o cercam. Mas estão todas tão distantes e sem sentido, nada dizem de verdade.

      Deveria ter previsto, deveria saber que ele o encontraria. O perseguidor o encontrou pela segunda vez. Ele é sagaz, difícil de enganar. O jovem tentou desaparecer, se tornar invisível, camuflar-se no ambiente e nas paredes brancas. Mudou a postura, o tom de voz. Mas não seria um cabelo diferente ou um sorriso fácil que burlaria seu destino e desviaria aquele que o caçava. Porque ele conhecia os seus segredos e sabia que a ferida que o jovem carregava na pele não cicatrizava nunca. Na primeira vez, com uma perversão calma e paciente, ele tocava nas ataduras e as puxava, expondo o sangue que fluía lentamente. Ele se contorceu e tentou correr, mas entregou-se a uma verdade suja. As lágrimas estavam secando quando o jovem levantou-se e, segurando os ferimentos, correu. Mas ele correu sem forças, correu contra a própria vontade, correu porque foi puxado. Como uma marionete que anda porque a fazem andar, ele apenas viveu porque queriam que ele vivesse. Ninguém pergunta ao boneco de madeira o que ele deseja.

      O som dos trilhos vibrantes começava a se elevar, pessoas estranhas se aproximavam da linha amarela. O perseguidor estava ao seu lado. O jovem desejava vê-lo longe, mas como da primeira vez, ele suplicava por sua companhia, porque naquele paradoxo, seu carrasco era a lembrança de que ele ainda vivia. Ele representava a fina corda de seda que ligava ao resto do mundo. Como se estivessem sozinhos, ele sentou-se ao lado do homem solitário. “Não vou deixar você”, disse ele, “porque não quero e porque você não quer que eu me vá”. O jovem não respondeu, apenas segurou sua mão e disse “Talvez agora eu consiga ir”, pensou.

      Mas para isso ele precisava ser definitivo em suas escolhas, sem se dar o luxo de errar. A única maneira de evitar o eterno prolongamento das coisas era ser interrompido bruscamente, e foi o que ele fez, dando alguns passos e atirando-se na frente da grande serpente de aço, desaparecendo para sempre.

      Nos últimos segundos, percebeu horrorizado, que o perseguidor o abraçava pela cintura, em um sacrifício gêmeo. “Para sempre”, sussurrou. Mas depois apenas houve o escuro.

Cidade dos ratos

  O céu rosado anuncia o fim, e as pernas fracas percorrem sua rota. Do que estão fugindo? O caminho além do vidro me assusta, mas desperta em mim um desejo de vozes, de aromas e epílogos. A dor alastra-se por estas calçadas.

  Sinto o vento em meus olhos, e penso em memórias esvoaçantes. Como és bela e também mortal. Estranha cidade, com a pureza de seus olhos e seus tons de luxúria. Quantos amantes queimam em teus quartos? Quantas almas choram no teu vazio? Quantos corpos agonizam em teus becos? E quantos predadores os arrastaram até ali? 

  Doces ilusões enchem-me a mente. Golpes cruéis ferem-me a carne. Já não posso abandoná-la, e sei agora o quanto lhe detesto. Sou um rato desta cidade.

4 de maio de 2013

Entenda...


Deixe-me vanescer, mas mantenha meu corpo sólido.

Deixe-me respirar, mas cubra-me de terra.

Deixe-me ver a luz, para poder vendar meus olhos.

Deixe-me sorrir e então me faça chorar.

Deixe-me entrar, só para ter o prazer de me obrigar a sair.

Deixe-me ver o caminho certo, mas me faça cruzar o atalho errado.

Deixe-me criar uma história, mas me faça queimar o papel.

Deixe-me perto demais, mas distancie-se no final.

Deixe-me plantar o lírio, mas garanta que eu me esqueça de regá-lo.

Deixe-me saber o que são laços, mas destrua-os sem piedade.

Deixe-me expor para não me entender.

Deixe-me ser feliz, mas me lance à miséria.

Deixe-me à vontade, somente para me ver deslocado.

Deixe-me viver ao seu lado, mas me deixe morrer sozinho.

Deixe-me mostrar a verdade e então vire às costas.

Deixe-me segurar sua mão, sem dizer que não tem forças para me erguer.

Deixe-me sonhar acordado, sabendo que nada terei quando despertar.

Deixe-me ver o conteúdo de sua alma, para que eu me depare com o meu vazio.

Eu imploro, deixe-me ficar.



3 de maio de 2013

Ventos de Plástico


     A intenção daquele balão colorido era alcançar as alturas até que a pressão das coisas de cima o destruísse. Seu propósito de sua vida causou sua própria morte. Mas poderia aquela pele elástica e aquele conteúdo gasoso evitarem subir aos céus? Conseguiria deixar de roçar as nuvens e de sentir o calor do sol banhando o seu cordão bem-amarrado? Poderia apenas se conformar com os desejos das crianças que o rodeavam, mas que jamais o compreenderiam? Poderia suportar viver e flutuar e pousar apenas com os olhares de satisfação e às vezes surpresa de um adulto ou dois? Viver uma vida plástica ou morrer no infinito do ar? Inchar-se sob a boca de alguém que jamais falaria sua língua ou estourar no bico de alguma ave que soberanamente domina o céu? Preferiria ele ficar preso ao carrinho de bebê que uma mãe apressada empurra pela avenida, cobiçado pelo bebê que jamais o terá de verdade ou pertencer à incerteza do vento que o conduziria aos espinhos de uma roseira?


O balão escolheu ficar e morrer aos poucos, murchando. A ideia de simplesmente explodir o assustava. O desconhecido o aterrorizava não por sua essência do não conhecer, mas da certeza que só existe uma saída honesta, não importa o quanto os outros insistam sobre algum atalho tentador. Reconheceu que no interior de cada decisão, as duas eram a mesma coisa.

E ficou no centro das crianças e das vozes febris e então, aos poucos, deixou de existir, manuseado por mãos que jamais o tocariam de verdade.

Abissal


Quando ele estava triste, mergulhava sempre nos mesmos pensamentos. Como um abismo de águas geladas, quanto mais afundava, mais o escuro crescia e mais frio o fluído se tornava. O problema fundamental era que ele simplesmente nunca esteve fora daquela poça infinita de água escura. Amarrado pela cintura a uma âncora de aço, nunca foi à superfície. Via as cordas próximas ao espelho d’água, e preferiria acreditar que elas eram uma oferta de ajuda. Queria desesperadamente agarrá-las e respirar o ar que todos respiravam, mas não podia. Porque as cordas, por mais resistentes fossem, estavam fora de seu alcance. As cordas de fibra crua eram parte de outro mundo, de um lugar mais bonito.

Ninguém poderia ajuda-lo. Nenhum homem na Terra era capaz de suportar o frio em que o garoto vivia. Era uma prisão solitária. Ele imaginava ter alguém ao seu lado, que dividisse as ondas de gelo e fosse capaz de aquecer seu corpo cinza. Mas a única chama que via era aquela que vinha de cima, de longe, do lugar das pessoas felizes.

Mas o sobrevivente álgido não desistiu. Ou melhor, ele desistiu sim. Não desistiu, pois ainda permitia que a água entrasse por sua garganta e desistiu porque já não esperava mais se separar daquela temperatura decrescente. Ele sabia que, para sempre, aquele seria seu caixão de inverno. Pois o amigo do fogo não poderia ajuda-lo; pois as cordas não poderiam ajuda-lo. Pois, mesmo que a âncora maciça se desintegrasse, ele não teria para onde nadar. Não havia espaço na casa do amigo de fogo para um coração que queria calor. Não existe espaço para o gelo na terra comum.

Então o menino cinza percebeu que sua única escolha era permanecer submerso em sua angústia, em sua tristeza. Sozinho.

A convocação

Alice não sentia a chuva feroz que despencava. Sua pele frágil estava úmida, bem como seus cabelos castanho-claros.  A barra azul de seu vestido roçava na lama, a imundície onde seus pés pisavam com a leveza de uma pluma.

Ela atendera ao chamado. A voz que a seduzira durante aqueles dias, ecoando em todos os cantos da fazenda, atraíra a menina até ali. Os morros negros e a histeria dos animais eram apenas o cenário e a sinfonia desta peça. A figura na escuridão, o mestre de todo o terror nas redondezas, aguardava Alice. Ela era tão jovem, tão doce, tão inocentemente bela. Um anjo, de aroma tão delirantemente irresistível. Uma peça valiosa que aquele ser tinha de levar consigo.

Alice estendeu sua mão. A figura na escuridão tomou a criança em seus braços, desaparecendo na noite. A chuva elevou sua fúria, e a noite ficara mais escura sem a inocência vestida de azul.

O Preço do Fogo

     A rua Doneto era famosa por abrigar, entre outras lojinhas, o único mercado de produtos orgânicos da cidade. O lugar era pequeno e transpirava nostalgia, com suas paredes de tijolos à vista e seus cartazes convidando as pessoas à uma vida mais saudável.

     Quem quer que entrasse no estabelecimento era recebido com uma onda de perfumes agradáveis, desprendidos das laranjas, tangerinas, melões e outras frutas tropicais. Um mar de cores vibrantes também fazia dupla com os perfumes, uma alegre mistura de tons de amarelo, laranja, verde e degradês que encantariam os olhos de qualquer criança.

    Da grande janela de vidro perfeitamente limpo, sem um arranhão, era possível observar todo o movimento da rua sem ser perturbado pelos sons do caos urbano. Tudo graças aos investimento em uma boa camada isolante de som, adquirida em várias prestações por Jorge, o velho de olhos cansados dono do lugar. O isolamento acústico associado à música ambiente que rodava todas as horas do dia, em um volume tão baixo quanto um sussurro, relaxava as pessoas. Tranquilos e à vontade, os clientes poderiam - e deveriam - comprar mais, ele esperava.

       O chão era revestido de linóleo branco e refletia a luz das lâmpadas. Passava uma sensação de limpeza. As paredes internas eram todas da mesma cor, levemente amareladas e decoradas com pôsteres semelhantes aos que ficam do lado de fora, de cartazes de preços anunciando promoções imperdíveis e, emoldurados, dois quadros com fotografias do pai e do avô materno de Jorge. Vender itens da sua fazenda como frutas, legumes, verduras, ovos de galinhas caipiras e até suco de uva natural era o negócio de sua família, antes mesmos de se pensar na existência de agrotóxicos e outros venenos desculpáveis. Passado de geração a geração, ele faria o mesmo com seu filho, se tivesse um.

     Nunca teve sucesso em suas tentativas de fazer filhos. Sua mulher não conseguia engravidar e isso sempre foi a miséria do casal. Motivos para discussões e lágrimas, a incapacidade de gerar provocava em ambos sentimentos de decepção, incapacidade e tristeza , todos mistos mas em intensidades diferentes. Como responder àquelas perguntas cretinas e que as pessoas insistiam em realizar, "Quantos filhos vocês têm?", "Quando vai surgir um meninão ou uma menininha nessa casa tão grande?" e, a mais odiosa para ele, "Por que estão sem filhos?".

       Por ironia do acaso ou puro azar, que por acaso ele não acreditava até então, sua esposa veio a falecer poucos meses depois de conseguir engravidar. O fato de perdê-la tão repentinamente e de levar consigo a continuação em seu ventre deu forças aos impulsos que o levaram à depressão. A única coisa que serviu de esteio e deu-lhe forças para andar foi trabalho no mercadinho. Ele não via outro caminho mais iluminado do que esse, pois recusava-se a ouvir aquela voz que dizia que seu problema seria fácil de resolver com um dedo pressionando um gatilho, que dizia que um milésimo de segundo - e um pouco de sangue - acabaria com sua dor.

       Seguia todo dia a mesma rotina. Antes de abrir a loja, varria o chão e retirava cuidadosamente o pó dos móveis e balcões, tanto do caixa como aqueles em que colocaria mais tarde as frutas. Não confiava à ninguém essa tarefa, queria ter a certeza de um trabalho perfeito, que apenas ele mesmo poderia fazer. Lavava o capacho para que todo o cliente que entrasse interpretasse como se fosse um material novo, apesar de estar gasto nas pontas e o "bem vindo" estar quase invisível pela força do tempo e do uso. Posicionava as mamões, as bandejas de morangos e os cachos de uva, que Antônio lhe trazia antes do sol nascer. Cada fruta ou maço de folhas verde-escuras era cuidadosamente posicionado. Ele tinha muito tempo livre. Sempre certificava-se de renovar seus extintores, trocando-os mesmo quando o prazo de utilização estava longe de acabar. Segurança era seu sobrenome, mas não foi sempre assim. Essa fixação só germinou, criou raízes e se fixou em sua vida, como hera que se agarra firmemente a um muro alto, depois de Cláudia morrer.

        Presa dentro do carro pelo metal retorcido e, o mais terrível, plenamente consciente, ela sentiu o cheiro de gasolina que escapara do motor destruído. Em sua última tentativa mecânica de funcionar, ele liberou algumas faíscas como alguém que boceja antes de dormir e então, criado o incêndio, ela queimou. Suas súplicas foram ouvidas a muitos metros de distância. As testemunhas do acidente, basicamente vizinhos, jamais conseguiram esquecer completamente dos gritos, o que incluíra o próprio Jorge, que estava esperando por ela em frente a uma grande loja de discos de vinil usados. Ele viu um veículo ultrapassando o sinal vermelho, batendo no carro de sua esposa e o fazendo perder o controle, batendo direto em um plátano velho. Desesperado, tentou ajudar, mas foi impedido por outras pessoas que lhe faziam companhia no espetáculo amarelo que estava acontecendo a sua frente.

        Sentado na beira da calçada, de longe, observava a montanha de cinzas que se tornou o velho carro e sua jovem mulher, fundidos para sempre no final de carbono que espera todos os incendiados. Depois daquele dia, ele nunca mais foi feliz.

         Aquele dia foi tão normal quantos todos os outros. Tarde, pouco antes de fechar as portas uma cliente trouxe problemas. Carregando ou, dependendo do ponto de vista, literalmente arrastando seu filho pequeno, uma criança de cabelos negros e muito pálida e com uma aparência apática. Jorge concluiu que ele deveria estar gripado ou com alguma virose do gênero, devido a vários casos que assistiu na televisão e escutou pelo rádio stereo, todos envolvendo crianças. Não deveria pegar sereno, ele pensou.

      Como se captasse esse pensamento, o garoto puxou o braço da mãe, cambaleou alguns passos trôpegos para frente e vomitou. O líquido quente e rosado, levemente viscoso saia de sua boca através de jatos vigorosos. Era muito conteúdo para uma criança daquele tamanho, Jorge pensou. Também notou vários pedaços de algo que considerou ser macarrão instantâneo mal digerido. Essas porcarias não fazem bem à ninguém, disse a si mesmo. A mãe, aflita demais pela discreta eliminação de seu filho, pegou-o pelo punho e partiu em direção a entrada do mercado. Com uma curva suave, jogou uma nota de cinquenta reais no balcão e foi embora com  seu rebento, um pacote de biscoitos de água e sal rico em fibras e uma garrafinha pequena de achocolatado orgânico. Como um trovão, saiu sem exigir o troco, "Pode ficar com o que sobrou", anunciou nervosa.

       Por sorte, era a última cliente do local. Jorge deu a volta no balcão, desviou da poça de vômito e chegou a porta da frente, mudando a face da plaquinha, expondo o "fechado" para o lado de fora, bem visível naquela porta da frente. Trancou-a e, voltando pelo mesmo caminho, foi em direção à porta dos fundos. Antes dela, ficava o depósito, que era seu destino original. Enquanto pegava um pano velho e enchia o balde verde com água e desinfetante de lavanda, seu preferido, nem se deu conta que a escuridão da noite já tinha se instalado. Também não notou que há algum tempo havia em frente ao seu mercado três homens parados.

      Com roupas escuras e puídas, rasgadas no joelho, talvez fosse o real motivo que levou a mãe a apressar-se e ir embora como se não houvesse amanhã. Pelo menos um motivo mais forte do que o embaraço pela mistura gástrica e bile despejada por seu filho. Seguravam em cada mão uma garrafa de cerveja com uma buchinha de tecido e jornal na ponta, servindo como rolha.

      Quando ouviu o som de vidro se estilhaçando e uma explosão abafada vindo do interior de seu mercado, Jorge correu de onde estava. Chegou a frente tão rápido que por pouco não pisoteou as labaredas que serpenteavam pelo seu chão até então quase imaculado. Foi em direção a porta, com os antebraços protegendo o rosto. Mas o caminho já estava tomado pelo inferno vermelho. Tentou olhar através da fumaça, a procura dos extintores, mas apenas um estava ao seu alcance. Com os olhos já marejando pelo produto gasoso do fogo, arrancou-o do seu repouso tranquilo. Rompendo o lacre e o virando em direção as labaredas, acionou o gatilho. Esvaziou todo o conteúdo gelado em minutos, mas não foi o suficiente, como se o incêndio fosse um gigante e o extintor uma pequena pedra lançada em sua direção.

           Indignado e surpreso, lançou o cilindro vermelho para o meio do fogo como uma vingança repleta de ironia. Então virou-se e foi em direção da porta dos fundos, que não abriu. Trancada, supos que alguém estava se esforçando para que não saísse daquela quente armadilha, até se lembrar que foi ele mesmo que a chaveou antecipadamente naquele dia. Mas nada podia fazer, pois o molho de chaves, que estava acima do balcão, já tinha sido engolido pelas chamas, tal qual o próprio balcão.

          Sem muitas opções, engatinhou para um dos cantos do estabelecimento, onde ficavam os pinhões, a lenha e as caixas de madeira, encolheu-se e fechou os olhos, sabia que não adiantaria gritar.

           Encolhido como um feto e chorando como um bebê, lembrou-se de tudo o que amava, ou tentou se lembrar. Nada dos olhos azuis de sua esposa, somente o brilho das maçãs argentinas; nada de suas férias naquela praia linda, mas o orgulho que sentia pelo seu linóleo sempre lustroso; nada de se lembrar daquelas tardes quentes em que Cláudia, com trajes de banho e tomando um sorvete, falava sobre como era feliz, mas  se lembrava dos sininho preso à porta que sempre anunciava a chegada de um novo cliente. A única coisa sólida que se lembrava era justamente daquilo que nunca possuiu: seu filho.

         Se seu fim fosse outro e ele analisasse a situação de fora, provavelmente acharia curioso como os últimos momentos de vida de uma pessoa são romantizados: nada de tão dramático como ele esperava que seria, nada de filmes mostrando sua vida.

            E então ele queimou.

             
    
          

           

1 de maio de 2013

O Vazio


A cada vez que as luzes eram acesas depois das oito, várias mariposas ficavam vagando por entre as lâmpadas fluorescentes, atraídas pela luz fria. Foi um dia quente, úmido pela chuva matinal, mas o céu estava limpo, cheio de estrelas. Uma boa oportunidade de caminhar ao ar livre, pensou Gabriel. E uma chance melhor ainda de se livrar dos colegas daquele acampamento.

Seu amigo estava deitado na parte de cima do beliche, lendo algumas revistas, indiferente. Seus cabelos loiros e longos cobriam-lhe a face, como se fosse um homem sem rosto. O edredom verde-escuro, para combinar com as paredes da mesma cor, cobria metade de seu tronco, deixando à mostra uma pele branca, denúncia de que há tempos não tinha contato com a luz do sol. Ele estava tão quieto nos últimos dias, evasivo. Se quer queri ir para o acampamento, estava lá por pressão dos pais.

         Então ele levantou os olhos e percebeu que o amigo abria a porta. Rápido como um gato, pulou da cama e foi em direção ao jovem negro.

“O que está fazendo, Gabriel? Não sabe que é proibido sair dos dormitórios depois das sete?” Ele parecia mais curioso do que aflito.

“E daí? Só temos um guarda nos vigiando hoje, e aquele velho gordo não vai nos importunar agora. Deve estar se entupindo de comida, provavelmente. Vem comigo.” Arthur fixou seus olhos castanhos em seu amigo por um instante e percebeu, com um sorriso no rosto, que ele já vestia sua calça e seu tênis Nike. “Você já estava planejando isso, não?” Falou o loiro com um tom de voz sagaz.

“Espere um pouco, Arthur. Ouvi o som do portão, é melhor eu dar uma olhada antes de sairmos.” E então, furtivamente, abriu a porta e se retirou tão silenciosamente, a passos macios.

Enquanto ele esperava, as lâmpadas piscaram duas vezes, e então simplesmente apagaram. Tudo ficou escuro. Ainda sentado na cama, Arthur levantou-se, pretendendo abrir a porta para ver o que acontecia. Mas não chegou à metade do trajeto. Algo o acertou nas costas, fazendo-o desabar no chão com um estrondo. Sentiu mais outro golpe violento nas costas, seguido de estalos. E muitos outros deram sequência ao primeiro.

Gabriel, que estava perto de uma das pilastras, ouviu o grito e voltou correndo. Tentou abrir a porta, a maçaneta girou, mas ela não abria totalmente. Algo estava impedindo-o, como se houvesse uma pessoa forte do outo lado tentando fechá-la. Ele berrou para que o amigo abrisse a porta, mas não surtiu efeito, e ele continuou a ouvir os gritos. Além deles, estática. Como se houvesse uma televisão ligada, mas sem nenhum canal sintonizado.

Os outros colegas já estavam abrindo as portas e, temerosos pelos gritos altos e os sons de destruição, colocavam as cabeças para fora, olhos atentos e arregalados. Um jovem pequeno e ruivo, de bochechas rosadas, começou a chorar. Já estava com as mãos fechadas para bater novamente, gritando por socorro, e então a luz voltou. De longe, o feixe de luz da lanterna se aproximava, com o instrutor gordo a guia-la, correndo e visivelmente ofegante.

Colocou a mão fria na maçaneta, girou-a lentamente, como se fosse um procedimento delicado, e forçou a porta. Ela abriu sem nenhuma resistência e então ele viu. Seus olhos momentaneamente se tornaram vidrados, e ele sentiu como se fosse desabar.

Seu amigo jazia deitado, de costas. Banhado em vermelho e com várias lacerações, seu rosto estava desfigurado, no que poderia ser encarado tanto como uma última expressão de pavor ou agonia. Sua roupa estava rasgada em vários pontos e Gabriel percebeu que havia coisas brancas espalhadas pelo chão, que mais tarde iria perceber, com terror, que eram dentes e outros pedaços de ossos. As paredes do dormitório estavam todas salpicadas de sangue e os poucos móveis e pertences estavam distribuídos caoticamente.

Ele não percebeu duas coisas naquele cenário terrível. A primeira é que no antebraço de seu amigo estava escrito, rasgado à lâmina, o símbolo “I”. A segunda coisa que não notou é que o teto, bem acima do corpo de Arthur, estava com marcas que queimado, com a madeira totalmente carbonizada, formando letras, uma palavra só:
VAZIO
Dopado pelo choque, ele cambaleou para trás e, caindo pelos dois pequenos degraus que dividiam a parte frontal dos dormitórios, desmaiou sobre o gramado molhado.

Horas depois, a polícia encontrou no quarto, ao lado do corpo, um pé de cabra, que consideraram a arma do homicídio. Encontraram também, vasculhando os pertences de Arthur, drogas; seringas; uma pistola semiautomática; munição; duas fotos de diferentes adolescentes, presos acusados de assalto e, não menos curioso, uma carta em papel branco com a mesma palavra escrita no teto do local do local do crime.

Quando Gabriel acordou, deitado em uma maca, dentro do hospital municipal, percebeu seus pais do lado de fora, tensos e discutindo com uma enfermeira grande, de aspecto severo. Teve vontade de chorar. Queria levantar e ir abraça-los, mas se sentia terrivelmente cansado. Simplesmente não conseguia. Notou um pedaço de papel dobrado em dois sobre o lençol azul e impecável, acima do seu umbigo. Curioso e com a mente turva devido aos calmantes, abriu-o devagar e leu seu conteúdo, resumido em apenas uma palavra: “ingratidão”.

Sem entender o que significava, amassou o papel e, reduzindo-o como uma bolinha, jogou no chão. Tentou se sentar na cama, mas uma pontada de dor atingiu sua nuca, forte e aguda, avisando que não era hora de se mexer.

Então, simplesmente deixou-se cair e adormeceu, com seus pensamentos voltados para sua última visão de seu amigo, olhos vazios e inexpressivos. Ausentes.

30 de abril de 2013

O Artista


O quadro ganhava tons de vermelho conforme ele avançava em direção a sua ideia. Não acreditava como não tinha pensado nisso, em suas longas tardes de tédio. As ferramentas estavam lá, os quadros virgens esperando pela camada de tinta. A vontade, por mais discreta, ainda estava presente. Achou, por um instante, que tinha perdido muito tempo.

Seus braços magros traçavam linhas firmes, retas e curvas, com precisão e severidade, como se castigasse o branco por não ter lhe ajudado a pensar em uma saída fácil. Em sua paleta já não era possível distinguir bem as cores, apenas bordas com aquilo que no começo havia sido bem definido. O escarlate agora era uma profusão de escuro, uma textura estranha, mas atrativa. Conforme dava formas à sua obra, seus olhos se apertavam em uma expressão de atenção aos mínimos detalhes. Nada poderia ser mais fiel, pensou ele. Nem se daria ao luxo de algo menor. Não se desperdiça uma chance quando ela nos bate à porta, seguiu pensando, com um sorriso involuntário no canto da boca.

Mantinha-se de pé em frente ao cavalete, trocando a pressão do peso do corpo de um pé para o outro. O banco alto estava caído de lado, sem vida, negligenciado. Sua calça jeans surrada estava salpicada de tinta, manchas velhas.  A regata branca estava intacta comparada ao resto, mas ela por si só era o contraste principal. Grandes manchas ovais de suor brotavam das axilas e do meio do peito, colando-a a pele morena que crescia e diminuía, de acordo com sua respiração tilintante. Seus cabelos longos e negros estavam livres, bagunçados, balançando como se houvesse vento no quarto. Músculos do rosto contraído, como por prazer. Talvez tensão. Era um artista por completo, poderia pensar qualquer pessoa.

A obra estava chegando ao fim. Estava perfeita, dizia o pintor a si mesmo, seguro de suas palavras e ágil em seus movimentos. Largou o pincel e a paleta de cores indistintas em cima de um balcão de madeira crua, junto com o pano velho, de tecido puído e acinzentado, guardado excepcionalmente para essas raras situações de grande criação. Com o dorso da mão limpou o suor da testa, que colava alguns fios de cabelo rente às sobrancelhas espessas. Iria comer alguma coisa. Não precisava mais ter medo nem pressa, tudo estava perto do fim, mais uma vez. Saiu do aposento e fez barulho, sons de água em um copo, uma geladeira sendo aberta e portas de armário fechando, um ranger angustiante de passos sobre uma madeira nobre.

 Demorou alguns minutos, mas pareceu uma eternidade para a mulher que o aguardava. Punhos presos a uma pilastra com arame farpado, que lhe arranhava a pele e lhe sugava discretos filetes de sangue vivo, quente. Os pés estavam também amarrados, ela não tinha saída que não fosse ficar na mesma posição agradável que ele a posicionara. O vestido de lã crua contrastava com o vermelho dos seus lábios, uma mancha de batom disforme. O cabelo longo e castanho pendia de apenas um lado do ombro, bem penteado. Estava sobre várias almofadas bordadas, ao lado de um vaso de gérberas vermelhas.

A musa inspiradora não gritava, não gemia, não chorava. Tudo tinha acontecido dias antes e ninguém ouviu suas preces. Ninguém iria ouvir, não fazia sentido em continuar suplicando. Estava conformada de seu destino, mesmo não sabendo o que lhe esperava. Tão acertada com os próprios sentimentos e absorta em alguns porquês, não percebeu que ele estava agachado ao seu lado, com um copo com um líquido esbranquiçado e cubos de gelo, dupla de um provável sanduiche.

“Coma um pouco e tome essa limonada, vai lhe fazer bem. E está ficando bom”. Disse ele com uma voz tão suave que ela não acreditava ser o mesmo homem que lhe prendeu as mãos e os pés tão forte que seus ossos doíam. Ele insistiu: “Prove pelo menos”.

E ela comeu e ela bebeu e ele limpou delicadamente seus lábios com um lenço limpo, branco. Tudo com calma, não queria perder o tom de vermelho do rosto de sua inspiração, a mulher de pardo. Aquela que lhe oferecera uma nova alegria ao fazer arte. De uma forma perversa, ela gostou da gentileza momentânea, mesmo acreditando que seria descartada depois. Ele levantou-se e virou as costas.

E voltou a pintar.

Semanas depois, o quadro da Mulher de Pardo foi exposto em uma pequenina galeria do centro da cidade. Ao lado do quadro da Mulher de Amarelo, da Mulher de Lilás e da Mulher de Preto. O talentoso pintor recebia elogios de suas obras, que se recusava a vender. Transpiravam realidade, carga emocional, vivacidade. Um senhor de olhos verdes e voz gentil disse que seus quadros pareciam vivos.

Enquanto conversava com uma mãe e sua filha, agradecendo humildemente os apreços da dama, começou a pensar em como seria triste perder um foco, viver no vazio.

Ao apertar a mão da mulher sentiu uma nova ideia surgindo. Enquanto ela se virava e ia embora, com sua pequena agarrada ao seu peito e apontando para a rua, ele pensou em voz alta, mas em tom discreto, como um sussurro:

“A Mulher de Azul é o que preciso”.

29 de abril de 2013

Violetas


          A janela estava embaçada e ela dormia. Seu sono era nervoso, irrequieto. Mesmo assim ela não acordou quando ele abriu a porta. Havia algum tempo que não conseguia levantar do sofá, então considerou a ideia de que cochilar um pouco poderia lhe fazer bem. Estava tão cansada que o toque macio do travesseiro sujo parecia suave, quase gentil sob seu rosto. Adormeceu no mesmo instante em que fechou os olhos.

          Deixou sobre a mesa, ao lado do abajur de porcelana verde, o relógio que tinha há anos. Presente de sua avó, ele até então não apresentava um arranhão sequer, perfeito e funcional. Certeiro. Restava também, meio fria, uma xícara de chá pela metade, com o líquido âmbar, estagnado e refletindo a luz que entrava pela janela sem cortinas. As violetas precisavam de água, mas ela não estava disposta a lidar com seu regador amarelo, isso poderia ficar para depois. Além do mais, elas não floriam há tanto tempo que ela nem sabia mais quais eram suas cores.

          Mas eram rosas, todas elas. Combinavam com seu cabelo escuro e seus olhos tão cansados, sempre atentos. Tristes demais para sua idade, seus sonhos. As flores delicadas não combinavam com os hematomas em sua pele e tampouco com os pequenos cortes em sua boca. Decididamente não combinavam com a cartela de comprimidos vazia no chão, abandonada.

          Ela acordou quando a lâmina a acertou a primeira vez, nas costas. Tentou gritar, mas sentiu como se não tivesse ar em seus pulmões. Era esguia, conseguiu em um pulo cair atrás do sofá bege, manchando-o. Colocou-se de joelhos quando a faca a atingiu no ombro esquerdo. Dessa vez pode gritar. Levantou, fraquejou, correu para a cozinha. Tudo estava girando a sua volta, estava tingindo a casa de vermelho. Caiu, e apenas sentiu dor. 

          Antes do escuro avançar, olhou  em direção a janela e, claramente, pensou no que aconteceria com suas violetas.